Thursday, August 17, 2006

O dia mais frio da década.

O dispertador com mostrador vermelho tocou e os olhos arderam. Era frio, mas a labuta não liga pra isso. Olhei pro lado e vi lençóis intactos. Beatriz já não estava lá há semanas. A lembrança dela era intensa, porém lacônica, como água de fjord em dia de sol.
Não tinha comida em casa. Odeio fazer compras. A geladeira tinha cerveja, água e morangos. Eu desconhecia a origem dos morangos. Talvez beatriz os tenha comprado, e alguma coisa os manteve maduros. Tomei cerveja de café novamente. Estou seriamente cogitando em não mais chamá-lo de café. Liguei a televisão, e a extremamente maquiada âncora da manhã disse ser o dia mais frio da década. Não me importei com ela, peguei meu casaco marrom e um maço de cigarros, enquanto questionava o volume de maquiagem da infeliz.
Enquanto saía do prédio, me deparei com o amistoso síndico Húngaro, que não falava português. Ouvi falar que o capeta respeita a língua dele, e não questiono isso.
Estava realmente frio. Maldita cidade de concreto. Queria um pedaço de céu, e tudo que eu tenho são limpadores de janela. Fui trabalhar, e o lotado ônibus pra paulista estava pior que nunca. Um rasta de bigode ralo me olhou. Eu tinha mais barba, nem me afetei. Certa vez Beatriz, que gosta muito de barba, disse que os homens berbes fazem comparações de ordem institiva. E eu concordo. O frio me fazia tremer a perna fina e enrolada, tanto que doía no osso.
No trabalho encontrei com os capadócios de sempre. Gostaria de vê-los todos numa luta estilo TeleCatch, um contra o outro. Talvez no verão. Perguntaram da menina com quem eu saía, e não soube o que responder. Ela tinha embora, fato, mas não lembro quando. Nem lembro se disse tchau. Talvez ela sequer tivesse aparecido, se eu não a sentisse tão forte. Era como se não tivesse ido.
Lembro da pele morena, isso sim. E do longo cabelo, preso de qualquer forma; da voz suave e do sorriso que dava quando eu apertava seu quadril com força, do jeito que costumo fazer. Mas o resto é transfigurável. As imagens se misturavam com coisas sem sentido, com exceções topológicas, redes sem fim e minha psicose no estado mais puro.
Eu tentei me esquivar das atenções no escritório com a velha piada da jaboticaba. Cheguei a conclusão que todos lá já sabiam que elas não podiam ter asas.
Na hora do almoço fui ao bairro japonês que tanto gosto. Costumava ir lá sempre quando me mudei pra cá. A senil e atarracada senhora dos bolinhos de polvo ainda estava lá, me dizendo que aquilo era moda no Japão. Acho que ela diz isso pra todos há cinqüenta anos. De qualquer forma, eu não canso de comê-los, e de surrupiar garfos de madeira. Eu os acho chique, e não tenhos garfos em casa.
Inventei uma desculpa de doença pra faltar o trabalho e vagabundear à tarde. Disse que era o frio, inquestionavemente verdadeiro, e disse que Beatriz cuidaria de mim. Mal sabem eles que ela tinha ido embora. Mal sabia eu também. Em casa, resolvi comer os famigerados morangos. Com os garfos de madeira. Não estavam podres, apenas gélidos, o que me levou a pensar que a geladeira não é tão ruim quanto parece, ou que o sistema de isolamento perdeu pro inverno paulista.
Pensei em ligar pra uma menina qualquer, e contar as baboseiras de sempre. Mas o caderno de telefones estranhamente estava em branco. Tenho medo de cadernos em branco, eles provam a minha incompetência literária. Rabisquei um desenho e o joguei num canto, esquecendo que queria era um programa. A casa tinha o cheiro de Beatriz, e isso me congelava por dentro. Se ao menos lembrasse de como foi tudo. É normal ter flashes de momentos intensos, mas não assim. Era como se eu tivesse tomado a pílula vermelha, e depois a azul, e depois dado uns tapas no cara e tomado o pote todo. Liguei a torneira pra lavar o rosto, e a água era só frio. A pressão era tanta que um som agudo saía, e o infame húngaro começou a resmungar. Ou quem sabe declamar poemas, daria no mesmo.
Fui embora, já estava começando a ter raiva daquilo tudo. Não de Beatriz, mas do resto todo. Mesmo que o resto seja apenas o síndico e a cerveja. Entrei num bar, e fui comer qualquer bode morto de água fria. Não tinha nada pra comer, mas eles serviam drinks. Talvez a água fria de matar bodes. Pedi a coisa mais esdrúxula que me veio à mente, com tudo e laranja. Tomei, e o gosto era lascinantemente intragável. A idéia da bebida ruim de tudo com laranja, do frio, da mentira, de Beatriz e dos morangos me confundiu, e quando menos percebi tinha pedido outro. Pensei em aprender uma piada nova, a da jaboticaba estava realmente velha. Podia também aprender a fazer bolinho de polvo, e economizar dinheiro. Podia usar o dinheiro pra comprar morangos e talheres. Podia procurar Beatriz, mas a idéia dos morangos era boa. Lembrei do maço de cigarros. Odeio fumar no frio, faz tudo ter gosto de nicotina. Mas pensei que talvez o cigarro tivesse gosto de nicotina. Joguei o maço no chão, e antes que o mendigo pegasse, pedi outro drink ruim. Se é pra ter gosto ruim, que seja ruim mesmo. Aposto que o húngaro não tomaria esse drink. Aposto também que se tomasse, ele perderia a postura sindical, e faria a barba. Odeio a barba dele, é grossa e cheia. Mas isso não me afeta, barbas são sempre diferentes, não há porque compará-las. Beatriz estava errada, nisso e quando ela foi, independente do contexto. Afinal, se ela foi, estava errada; pois se não estava, estava eu, e eu não posso estar errado. Até comprei morangos pra ela, oras. E ela provavelmente gostava de mim, senão não teria ficado tanto tempo. Foi o tempo de eu deixar a barba crescer, mesmo já tendo ela malfeita no dia em que saímos. Tenho a impressão que fomos a um show de um quarteto de Vaudeville. Ela falava de conflitos étnicos, e coisas em holandês. Sem entender, me senti ignorante. Ela não pode ter me deixado por eu ser ignorante. Eu ao menos sei o que é Vaudeville, tenho barba e sei uma ótima piada. Ia apresentá-la no trabalho, mas acho que nem cheguei a mencioná-la por lá. Não gosto deles, principalmente quando falam de conflitos étnicos.
Meus olhos arderam, senti frio, e não vi o mostrador. Vi um truculento dono de bar me mandando ir pra casa, e cobrando por alguns drinks ruins. Tentei oferecer uns talheres de madeira como pagamento, mas ele não aceitou. Desgraçado. Duvido que ele tenha alguma fruta que não seja laranja. Eu ao menos tenho morangos. Isso é, tinha, assim como tinha Beatriz.
Andei sozinho até encontrar minha casa, sofrendo com o frio. Entrei torto e cambaleante, e desmaiei. Acordei no dia seguinte, atrasado, sem mostrador, sem olho ardendo, sem morangos e sem talheres de madeira. Não havia niguém pra ouvir a piada da joboticaba, e o maldito síndico não falava português. Senti falta de Beatriz, além do frio inercial do dia anterior.
Foi quando eu entendi.
Beatriz era o próprio frio, e aquele tinha sido o dia mais frio da década.