Monday, May 01, 2006

Desejos

Dizem os mais velhos que numa época de prosperidade viveu um jovem rapaz que queria ser especial aos olhos de sua amada. O seu nome é irrelevante.
Nascido com seis dedos em cada mão, vivia de fazer malabarismos defronte o castelo do rei, durante a feira que tomava lugar todas as manhãs. Não era rico, pelo contrário, gozava apenas de seu talento e de sua alegria. Comia bem graças à boa vontade do Baal, já que as recentes cheias se mostravam periódicas. Lançava belíssimos pratos de porcelana branca feitos com o zelo de doze trabalhadores irmãos, amparados com a cautela mais que necessária dos mesmos. O próprio rei, homem mais sábio que se conhecia, já havia descido as escadarias para mirar o jovem malabarista oscilar de um lado a outro da praça, com seus longos e negros cabelos trançados afilando a figura.
Estava a colher legumes frescos para um amigo em troca do almoço, quando um pomba branca pousou na sua frente e disse a ele que visasse a sua felicidade antes de qualquer coisa. Desentendido, almoçou os legumes com um prazer maior que o normal, mas sem percebê-lo, ainda pensando na ave. Avistou algo que não era apenas uma mulher, mas a própria concepção de perfeição que um homem daquele mundo teria. Com os olhos negros e amendoados ofuscava toda a beleza que os artistas de rua esbanjavam na feira. Era como se seu âmago negro erradiasse mais que todas as estrelas juntas, num céu infinito sem extinções, onde tudo é ligado a tudo.
Daquele momento em diante, amou-a mais que a si mesmo. Queria poder dá-la o mundo, e talvez o cosmo todo; queria poder entregar-lhe numa cesta a cobra que põe o infinito naquilo tudo em que não conseguimos pensar. Sabia de sua condição, não poderia ter uma família assim. Ele jamais teria dinheiro o bastante para pagar o dote que qualquer família exigia, e mesmo que ele pagasse a família, não seria capaz de dar o conforto que a sua amada merecia com os trocados da feira. Tentou buscar formas de enriquecer, frustrando-se inevitavelmente. Só sabia fazer aquilo que fazia melhor que todos, e não era o bastante. Sentiu-se acoado por cem homens armados para a guerra, e impotente perante o vento vernal. Odiou-se, por ser capaz de fazer algo. Sim, capaz de usar sua deformidade de nascença em prol de algo belo e de agrado geral, ainda que não lucrativo. Queria ser comerciante, e ficar muito rico. Foi até o rei, posicionou-se a três braças dele, e clamou por sua sabedoria. Pedia dinheiro, pedia formas de tê-lo para sempre, pedia que mudasse a sua vida, pedia que expurgasse o tão famoso dom, pedia, pedia. O rei, acostumado a ouvir clamores entoados por pessoas de todo o mundo, encrustados de elogios e agradecimentos, reagiu àquele como uma criança reage a um desajeitado tocando uma harpa lócria. Pensou bastante, e após se consultar com o Baal, disse que o problema dele não tinha solução, mas que a Fertilidade em si tinha concedido essa exceção. Ele deveria ir ao sopé do monte mais próximo, capturar dois espécimes de lagarto que ali vivia, utilizá-los para extirpar o sexto dedo de cada mão, e plantá-los em solo macio, de modo a obter uma árvore tenra. Também disse que era uma árvore muito frágil, que só dava frutos por um curto período de tempo, sendo depois uma fonte de ameixas brancas, e apenas isso. Saiu sem sequer olhar novamente para o rei.
Nascido e criado num plano irrigado, viajou muitas léguas até chegar ao monte, e acampou por semanas até encontrar os lagartos. Após tê-los capturados, correu sem parar para dormir até a sua casa, onde colocou-os sobre o sexto dedo de cada mão. Eles se enrolaram e consumiram o dedo, como se houvesse afinidade espiritual entre um e outro. Depois caminharam até se encontrar, e diminuíram até assumir a forma de uma única semente. Devidamente plantada e regada todos os dias, em pouco tempo surgiu uma árvore que frutificava moedas de ouro. Em posse da colheita delas poderia casar-se com qualquer muher que quisesse do leito do Grande Rio.
Finalmente foi à feira para se manifestar ao seu amor. Mas ela não estava lá. Passaram meses, e ela não aparecia. Sem saber que houvera, retirou-se à sua outra felicidade: o malabarismo. Também se surpreendeu ao ver que com cinco dedos era impossível fazer aquilo que tão tranquilamente vivera fazendo. Perdera o seu dom. Passou a viver do dinheiro que tinha, por mais que entristecido, já que o sentido de sua vida era minguante. Agia como um nobre desconhecido, a esperar por seu amor, até o momento em que a árvore não mais deu moedas. Não podia viver com as ameixas, eram frutas comuns demais para se tirar um sustento. Empobreceu vertiginosamente, sendo obrigado a ceifar de uma vez por todas tudo de bom e alegre que tinha na sua vida. Perdera o seu dom, não encontrara o seu amor, teve que vender sua liberdade.
Entregue como escravo ao rei, encontrou-o numa de suas caminhadas e olhou-o com mais respeito que na última vez, já que agora sabia o que era sofrer. Agradeceu ao rei pelo trabalho e pela comida, e por tudo o que vivera até tal provação. Impressionado, o rei disse a ele que Baal estava a observá-lo por anos, e que previra tal comportamento. Disse a ele que fosse embora, e fizesse o que o seu coração mandasse. O que lhe fizesse feliz. Voltou à pacata feira, como ajudante de comerciante.
Meses depois, avistou uma caravana de cantores chegar, com ninguém menos que a moça dos olhos negros. Era uma artista. Tão pobre quanto ele. Correu até ela, e disse que a amava. Ela retribuiu o olhar e a declaração, afirmando que há muito esperava por ele, dizendo que nada a encantava mais que vê-lo lançar seus pratos com majestosidade. Era como se mil facas o cortassem de dentro para fora. Correu até a árvore, e ajoelhado sobre as raízes, pediu ao Baal seu dom de volta, a única coisa que o fazia ser ele mesmo. Fechou os olhos com muita força pedindo repetidamente pelos seus dedos. E como numa estória fantástica, suas mãos tinham doze dedos novamente, e seu coração tinha brilho. Voltou à feira, olhou nos olhos da sua amada e disse:
-Talvez eu fosse feliz se morasse numa torre de marfim; numa terra fértil de cheias passadas com malabaristas de seis dedos, olhos amendoados e tez amarela, com suas promessas a um Baal qualquer e suas árvores de desejos semeadas por talento.
Talvez eu seja feliz com um elogio vindo de uma talentosíssima cantora.

3 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Você é bom em tudo o que você faz. Eu adoro ver como você brilha. Na física, na música, nos seus textos fantásticos... adoro ver como você é amado e respeitado por todos que percebem um pouquinho de tudo que você é. Você é tão especial, Pe... Sempre querendo bem a todos que você ama, se preocupando com a felicidade de cada um...
Lindo e especial. O que você é.
Te amo
:*

8:31 AM  
Anonymous Anonymous said...

pqp lisbao... nao sabia que vc tinha um blog... nao me espanta ver o quao bom sao seus textos, mas nao tinha conhecimento desse mais um talento seu =D

meus parabens, seu cabeçudo!

esse conto eh meio nordico, neh? gostei muito!

6:32 PM  
Anonymous Anonymous said...

Olá, Pedro

Aqui é a Juliana, monitora de redação. Olha, me diverti muito lendo seus textos. Você é muitíssimo criativo. Agora, você me deixou com "a pulga atrás da orelha"... Quero verdadeiramente entender por que você e outr@s alun@s tão criativos não se empenham na hora de fazer os textos da escola. Serão os temas? Ou será a pressão, a falta de tempo?
Tenho certeza de que a minha rotina seria muito menos cansativa se tod@s se empenhassem um pouco mais, se descrobissem o prazer que pode haver em escrever (assim como você com certeza já descobriu). Espero que eu possa possibilitar essa percepção a alguns.
Aliás, você se importa se eu usar um dos seus conselhos na hora de dar as minhas dicas: usar duas negações é como jogar m. no ventilador. Adorei!
E a prova, como foi? Estou torcendo por você!
Apareça!
Abraços,

5:38 PM  

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