Desejos
Dizem os mais velhos que numa época de prosperidade viveu um jovem rapaz que queria ser especial aos olhos de sua amada. O seu nome é irrelevante.
Nascido com seis dedos em cada mão, vivia de fazer malabarismos defronte o castelo do rei, durante a feira que tomava lugar todas as manhãs. Não era rico, pelo contrário, gozava apenas de seu talento e de sua alegria. Comia bem graças à boa vontade do Baal, já que as recentes cheias se mostravam periódicas. Lançava belíssimos pratos de porcelana branca feitos com o zelo de doze trabalhadores irmãos, amparados com a cautela mais que necessária dos mesmos. O próprio rei, homem mais sábio que se conhecia, já havia descido as escadarias para mirar o jovem malabarista oscilar de um lado a outro da praça, com seus longos e negros cabelos trançados afilando a figura.
Estava a colher legumes frescos para um amigo em troca do almoço, quando um pomba branca pousou na sua frente e disse a ele que visasse a sua felicidade antes de qualquer coisa. Desentendido, almoçou os legumes com um prazer maior que o normal, mas sem percebê-lo, ainda pensando na ave. Avistou algo que não era apenas uma mulher, mas a própria concepção de perfeição que um homem daquele mundo teria. Com os olhos negros e amendoados ofuscava toda a beleza que os artistas de rua esbanjavam na feira. Era como se seu âmago negro erradiasse mais que todas as estrelas juntas, num céu infinito sem extinções, onde tudo é ligado a tudo.
Daquele momento em diante, amou-a mais que a si mesmo. Queria poder dá-la o mundo, e talvez o cosmo todo; queria poder entregar-lhe numa cesta a cobra que põe o infinito naquilo tudo em que não conseguimos pensar. Sabia de sua condição, não poderia ter uma família assim. Ele jamais teria dinheiro o bastante para pagar o dote que qualquer família exigia, e mesmo que ele pagasse a família, não seria capaz de dar o conforto que a sua amada merecia com os trocados da feira. Tentou buscar formas de enriquecer, frustrando-se inevitavelmente. Só sabia fazer aquilo que fazia melhor que todos, e não era o bastante. Sentiu-se acoado por cem homens armados para a guerra, e impotente perante o vento vernal. Odiou-se, por ser capaz de fazer algo. Sim, capaz de usar sua deformidade de nascença em prol de algo belo e de agrado geral, ainda que não lucrativo. Queria ser comerciante, e ficar muito rico. Foi até o rei, posicionou-se a três braças dele, e clamou por sua sabedoria. Pedia dinheiro, pedia formas de tê-lo para sempre, pedia que mudasse a sua vida, pedia que expurgasse o tão famoso dom, pedia, pedia. O rei, acostumado a ouvir clamores entoados por pessoas de todo o mundo, encrustados de elogios e agradecimentos, reagiu àquele como uma criança reage a um desajeitado tocando uma harpa lócria. Pensou bastante, e após se consultar com o Baal, disse que o problema dele não tinha solução, mas que a Fertilidade em si tinha concedido essa exceção. Ele deveria ir ao sopé do monte mais próximo, capturar dois espécimes de lagarto que ali vivia, utilizá-los para extirpar o sexto dedo de cada mão, e plantá-los em solo macio, de modo a obter uma árvore tenra. Também disse que era uma árvore muito frágil, que só dava frutos por um curto período de tempo, sendo depois uma fonte de ameixas brancas, e apenas isso. Saiu sem sequer olhar novamente para o rei.
Nascido e criado num plano irrigado, viajou muitas léguas até chegar ao monte, e acampou por semanas até encontrar os lagartos. Após tê-los capturados, correu sem parar para dormir até a sua casa, onde colocou-os sobre o sexto dedo de cada mão. Eles se enrolaram e consumiram o dedo, como se houvesse afinidade espiritual entre um e outro. Depois caminharam até se encontrar, e diminuíram até assumir a forma de uma única semente. Devidamente plantada e regada todos os dias, em pouco tempo surgiu uma árvore que frutificava moedas de ouro. Em posse da colheita delas poderia casar-se com qualquer muher que quisesse do leito do Grande Rio.
Finalmente foi à feira para se manifestar ao seu amor. Mas ela não estava lá. Passaram meses, e ela não aparecia. Sem saber que houvera, retirou-se à sua outra felicidade: o malabarismo. Também se surpreendeu ao ver que com cinco dedos era impossível fazer aquilo que tão tranquilamente vivera fazendo. Perdera o seu dom. Passou a viver do dinheiro que tinha, por mais que entristecido, já que o sentido de sua vida era minguante. Agia como um nobre desconhecido, a esperar por seu amor, até o momento em que a árvore não mais deu moedas. Não podia viver com as ameixas, eram frutas comuns demais para se tirar um sustento. Empobreceu vertiginosamente, sendo obrigado a ceifar de uma vez por todas tudo de bom e alegre que tinha na sua vida. Perdera o seu dom, não encontrara o seu amor, teve que vender sua liberdade.
Entregue como escravo ao rei, encontrou-o numa de suas caminhadas e olhou-o com mais respeito que na última vez, já que agora sabia o que era sofrer. Agradeceu ao rei pelo trabalho e pela comida, e por tudo o que vivera até tal provação. Impressionado, o rei disse a ele que Baal estava a observá-lo por anos, e que previra tal comportamento. Disse a ele que fosse embora, e fizesse o que o seu coração mandasse. O que lhe fizesse feliz. Voltou à pacata feira, como ajudante de comerciante.
Meses depois, avistou uma caravana de cantores chegar, com ninguém menos que a moça dos olhos negros. Era uma artista. Tão pobre quanto ele. Correu até ela, e disse que a amava. Ela retribuiu o olhar e a declaração, afirmando que há muito esperava por ele, dizendo que nada a encantava mais que vê-lo lançar seus pratos com majestosidade. Era como se mil facas o cortassem de dentro para fora. Correu até a árvore, e ajoelhado sobre as raízes, pediu ao Baal seu dom de volta, a única coisa que o fazia ser ele mesmo. Fechou os olhos com muita força pedindo repetidamente pelos seus dedos. E como numa estória fantástica, suas mãos tinham doze dedos novamente, e seu coração tinha brilho. Voltou à feira, olhou nos olhos da sua amada e disse:
-Talvez eu fosse feliz se morasse numa torre de marfim; numa terra fértil de cheias passadas com malabaristas de seis dedos, olhos amendoados e tez amarela, com suas promessas a um Baal qualquer e suas árvores de desejos semeadas por talento.
Talvez eu seja feliz com um elogio vindo de uma talentosíssima cantora.
Nascido com seis dedos em cada mão, vivia de fazer malabarismos defronte o castelo do rei, durante a feira que tomava lugar todas as manhãs. Não era rico, pelo contrário, gozava apenas de seu talento e de sua alegria. Comia bem graças à boa vontade do Baal, já que as recentes cheias se mostravam periódicas. Lançava belíssimos pratos de porcelana branca feitos com o zelo de doze trabalhadores irmãos, amparados com a cautela mais que necessária dos mesmos. O próprio rei, homem mais sábio que se conhecia, já havia descido as escadarias para mirar o jovem malabarista oscilar de um lado a outro da praça, com seus longos e negros cabelos trançados afilando a figura.
Estava a colher legumes frescos para um amigo em troca do almoço, quando um pomba branca pousou na sua frente e disse a ele que visasse a sua felicidade antes de qualquer coisa. Desentendido, almoçou os legumes com um prazer maior que o normal, mas sem percebê-lo, ainda pensando na ave. Avistou algo que não era apenas uma mulher, mas a própria concepção de perfeição que um homem daquele mundo teria. Com os olhos negros e amendoados ofuscava toda a beleza que os artistas de rua esbanjavam na feira. Era como se seu âmago negro erradiasse mais que todas as estrelas juntas, num céu infinito sem extinções, onde tudo é ligado a tudo.
Daquele momento em diante, amou-a mais que a si mesmo. Queria poder dá-la o mundo, e talvez o cosmo todo; queria poder entregar-lhe numa cesta a cobra que põe o infinito naquilo tudo em que não conseguimos pensar. Sabia de sua condição, não poderia ter uma família assim. Ele jamais teria dinheiro o bastante para pagar o dote que qualquer família exigia, e mesmo que ele pagasse a família, não seria capaz de dar o conforto que a sua amada merecia com os trocados da feira. Tentou buscar formas de enriquecer, frustrando-se inevitavelmente. Só sabia fazer aquilo que fazia melhor que todos, e não era o bastante. Sentiu-se acoado por cem homens armados para a guerra, e impotente perante o vento vernal. Odiou-se, por ser capaz de fazer algo. Sim, capaz de usar sua deformidade de nascença em prol de algo belo e de agrado geral, ainda que não lucrativo. Queria ser comerciante, e ficar muito rico. Foi até o rei, posicionou-se a três braças dele, e clamou por sua sabedoria. Pedia dinheiro, pedia formas de tê-lo para sempre, pedia que mudasse a sua vida, pedia que expurgasse o tão famoso dom, pedia, pedia. O rei, acostumado a ouvir clamores entoados por pessoas de todo o mundo, encrustados de elogios e agradecimentos, reagiu àquele como uma criança reage a um desajeitado tocando uma harpa lócria. Pensou bastante, e após se consultar com o Baal, disse que o problema dele não tinha solução, mas que a Fertilidade em si tinha concedido essa exceção. Ele deveria ir ao sopé do monte mais próximo, capturar dois espécimes de lagarto que ali vivia, utilizá-los para extirpar o sexto dedo de cada mão, e plantá-los em solo macio, de modo a obter uma árvore tenra. Também disse que era uma árvore muito frágil, que só dava frutos por um curto período de tempo, sendo depois uma fonte de ameixas brancas, e apenas isso. Saiu sem sequer olhar novamente para o rei.
Nascido e criado num plano irrigado, viajou muitas léguas até chegar ao monte, e acampou por semanas até encontrar os lagartos. Após tê-los capturados, correu sem parar para dormir até a sua casa, onde colocou-os sobre o sexto dedo de cada mão. Eles se enrolaram e consumiram o dedo, como se houvesse afinidade espiritual entre um e outro. Depois caminharam até se encontrar, e diminuíram até assumir a forma de uma única semente. Devidamente plantada e regada todos os dias, em pouco tempo surgiu uma árvore que frutificava moedas de ouro. Em posse da colheita delas poderia casar-se com qualquer muher que quisesse do leito do Grande Rio.
Finalmente foi à feira para se manifestar ao seu amor. Mas ela não estava lá. Passaram meses, e ela não aparecia. Sem saber que houvera, retirou-se à sua outra felicidade: o malabarismo. Também se surpreendeu ao ver que com cinco dedos era impossível fazer aquilo que tão tranquilamente vivera fazendo. Perdera o seu dom. Passou a viver do dinheiro que tinha, por mais que entristecido, já que o sentido de sua vida era minguante. Agia como um nobre desconhecido, a esperar por seu amor, até o momento em que a árvore não mais deu moedas. Não podia viver com as ameixas, eram frutas comuns demais para se tirar um sustento. Empobreceu vertiginosamente, sendo obrigado a ceifar de uma vez por todas tudo de bom e alegre que tinha na sua vida. Perdera o seu dom, não encontrara o seu amor, teve que vender sua liberdade.
Entregue como escravo ao rei, encontrou-o numa de suas caminhadas e olhou-o com mais respeito que na última vez, já que agora sabia o que era sofrer. Agradeceu ao rei pelo trabalho e pela comida, e por tudo o que vivera até tal provação. Impressionado, o rei disse a ele que Baal estava a observá-lo por anos, e que previra tal comportamento. Disse a ele que fosse embora, e fizesse o que o seu coração mandasse. O que lhe fizesse feliz. Voltou à pacata feira, como ajudante de comerciante.
Meses depois, avistou uma caravana de cantores chegar, com ninguém menos que a moça dos olhos negros. Era uma artista. Tão pobre quanto ele. Correu até ela, e disse que a amava. Ela retribuiu o olhar e a declaração, afirmando que há muito esperava por ele, dizendo que nada a encantava mais que vê-lo lançar seus pratos com majestosidade. Era como se mil facas o cortassem de dentro para fora. Correu até a árvore, e ajoelhado sobre as raízes, pediu ao Baal seu dom de volta, a única coisa que o fazia ser ele mesmo. Fechou os olhos com muita força pedindo repetidamente pelos seus dedos. E como numa estória fantástica, suas mãos tinham doze dedos novamente, e seu coração tinha brilho. Voltou à feira, olhou nos olhos da sua amada e disse:
-Talvez eu fosse feliz se morasse numa torre de marfim; numa terra fértil de cheias passadas com malabaristas de seis dedos, olhos amendoados e tez amarela, com suas promessas a um Baal qualquer e suas árvores de desejos semeadas por talento.
Talvez eu seja feliz com um elogio vindo de uma talentosíssima cantora.